HOTEL LINDA DO ROSÁRIO (PARTE IV)
Passei a simpatizar com paixões impossíveis. Tornei-me
especialista nisso. Afinal, aprendi a me administrar, cuidando-me para não
exagerar na dose, tornei-me dosada, atenta me atentei para vigiar os meus
passos, policiando meus anseios com a finalidade de viver uma vida
centrada e costurada no bem viver, sem alcançar a mais alta expressão de amar
justamente porque esta alto grau de amor só o conquistaria com outro bem, bem
sei com quem, não com Márcio, isto é verdadeiro, porque com ele vivo um
amor derradeiro, rotineiro e sem viço. Aprendi a criar enredos, a
guardar segredos, multipliquei personagens, dei-lhes vida, elas estão
espalhadas pelo mundo afora, em meu mundo criado pela imaginação. Fiz
amizade com as minhas valentias, em atos heroicos me aportei, aprendi que ter
coragem não contagia, a covardia, sim. Gostaria de reger uma orquestra de
pássaros enquanto o sol surge no nascente. Deus deu-nos o sonho para que
possamos criar quimeras...
Um ano e meio depois do casamento da amiga Corina com
Jayme, pelo mesmo processo de casamento passei com Márcio. As mesmas
emoções vivenciamos , grandes momentos inesquecíveis e outros tantos
conquistaremos . Assim é a vida que levarei em minha missão de
absorver a vida por mim escolhida Marcio comprou uma belíssima
casa no Grajaú, distante alguns quilômetros da residência de Jayme e Corina.
Foram frequentes as nossas visitas, Jonas, o primeiro filho do casal
amigo, era uma criança linda, simpática e nosso afilhado. Corina estava grávida
novamente. O que mais encantava em minha amiga era aquela contagiante alegria
de viver, ela era feliz e nos tornava felizes também. O desvelo pelo marido, a
carinhosa atenção dispensada à criança, tudo nela rescendia amor. Márcio e
Jayme saiam para conversar ou jogar sinuca na sala de jogos contígua à sala
principal de nossa residência e, nós duas, nos confabulávamos acerca do dia a
dia de casada e suas implicações. Nessas ocasiões, pouco ficava sozinha com
Jayme, evitava conversar com ele. O mesmo não acontecia com Corina e
Márcio: ambos eram simpáticos, cordatos e sempre existiam assuntos a serem
debatidos entre os dois. Às vezes, em meus pensamentos vadios, as
comparações apareciam, imaginando a certeza de casais bem definidos: Jayme e eu
em vida plena, Corina e Márcio em vida amena. Não se deve procurar acertos no
concerto de seres que se amam. Corina ama somente Jayme e Márcio ama somente a
mim e isto é o bastante. Se os três soubessem o que penso, olhariam para mim
como se eu fosse criadora de monstros. Chove lá fora, uma chuva fina,
persistente, fria a rua, noite sem lua, a escuridão, chove tristeza, venta
angústia, na incerteza de ser, sonolenta, não vejo estrelas para sonhar...
Dói-me na alma este excesso de coisas não realizadas, restando apenas o
vazio... Sim, estou vazia, o que fazer? Fiz. Estou grávida! Corina e eu
estamos na fase de engravidar. Eu pro lado de cá, ela do lado de lá. Que
beleza! As nossas casas tomadas de berços e brinquedos, os filhos, crianças
lindas, babás, peitos entumescidos de leite, dar de mamar, a mais pura
maternidade que povoa este mundo de Deus. Corina, quatro filhos: Jonas,
Guilherme, Débora e Constança. Eu três filhos: Carmen, Leandro e Vicente.
Acho que o paraíso aqui na terra é exatamente isto que
vivemos Corina e eu: a camada fundamental de nossa alma e uma esfera
cósmica. Este Paraíso é encontrado tanto no ênstase (nas profundezas, dentro de
si, introspecção) como no êxtase nas alturas fora de si). Ambas somos as
mulheres do dia e as mulheres da noite. O Paraíso sendo a região do começo ou
dos princípios, é também a região do começo da "Queda" ou do
princípio da tentação, isto é, do princípio da transição da obediência para a
desobediência, da pobreza para a cupidez e da castidade para a impudência...
Impudência... Tenho medo da queda... Tenho medo de lembrar que existo, que
existe um passado não vivido, pendente... Pendência... Um passado morto ou que
tento matar, mas ele existe muito vivo em minha memória, não intelectualmente,
mas psiquicamente substancial. Compreendo perfeitamente que não adianta
tentar fugir, se procuro mudar, este passado me acompanha, ele é visceral. Nada
perece e nada se perde no domínio psíquico: a minha história essencial - Jayme
em minha vida - isto é, as alegrias que poderiam ter existido e me foram
negadas e os sofrimentos reais que me foram outorgados, as religiões e as revelações
reais do passado continuam a viver em cada um de nós, e vive em mim, e em mim é
que se encontra a chave da história essencial de minha vida com a vida de
Jayme. Procuro esconder essa chave. Por enquanto, voltada estou ao trabalho de
professora numa escola pública, voltada estou ao lar, à educação dos filhos que
crescem com graça e beleza. Vou deixar o medo para depois...
Bem sei que o medo me acompanha, é disto que tenho medo. As
alegrias que me foram negadas... quem me negou? As tristezas que me foram
outorgadas... quem me outorgou? Preciso parar para pensar e encontrar as
respostas, as minhas respostas livre da ajuda de qualquer pessoa extranha ao
meu drama pessoal, ninguém!
No Paraíso houve três tentações. Eis os elementos
essenciais das três tentações que se estendem à minha vida de mulher que
procura ser soberana, mas que se engana até aprender a não poder ser: Eva ouviu
a voz da serpente; viu que a árvore "era boa ao apetite e formosa à
vista"; tomou do seu fruto e comeu, deu-o também ao seu marodo, e ele
comeu... A voz da serpente é o meu lado carente e animal que grita, cuja
inteligência é a mais avançada (animal astuto) de todos os seres vivos
(animais) cuja consciência é voltada para a horizontal. Antes de
Jayme, a minha inteligência era pura, era vertical, os meus olhos não tinham
ainda sido abertos para o desejo carnal, estava "nua" e não me
envergonhava em ser nua, estava consciente das coisas no sentido vertical, das
coisas de Deus. Era inconsciente das coisas "nuas", isto é, das coisas
separadas de Deus. Tinha consciência do ideal e do real que me rodeava,
era alegre, feliz e namorava a vida. Agora, estou na horizontalidade da
consciência, vitimada do realismo puro e simples: o que está em mim é como o
que está fora de mim, e o que está fora de mim é como o que está em mim. Agora
estou consciente do subjetivo e do objetivo horizontal, vendo as coisas fugindo
ao controle de minha mente, sinto-me nua em mim mesma, por mim mesma e para mim
mesma. O meu eu exercendo a função da vontade, conhecendo o bem e o mal e me
voltando para o mal. È o princípio do poder, que é a autonomia da luz da
consciência, são duas vozes que escuto, duas inspirações provenientes de fontes
contrárias. Estou cheia de dúvidas...
Procurava não pensar, não tinha tempo para pensar, eu
procura não ter tempo para nada, justamente para não pensar... Parar para
pensar? Nem pensar! Procurava tornar a família feliz, "totalmente" ou
tolamente feliz. Carmen, o orgulho do pai Márcio, crescia bela, cabelos lisos,
tez morena clara, pele aveludada, sorriso fácil, enigmática e sedutora. Adepta
das ciências sociais, o campo da sociologia a fascinava. Minha filha era uma
exímia bailarina. Leandro, herdou os modos e gestos do pai: alegre,
participativo mas responsável com os deveres e obrigações. Vicente, o meu belo
Vicente, alegre, sorridente, praticava esportes, exímio nadador e curioso com
as coisas ligadas à medicina. Márcio se revelara um excelente pai além de
excelente marido. Tenho orgulho da minha família. Os filhos de Corina e Jayme,
estudaram nos mesmos colégios que os meus filhos, praticamente foram criados
juntos. Jonas, belo rapaz, compenetrado , jovial e muito amável. Estudou no
Colégio Militar junto com Leandro, os dois ingressaram nas Agulhas Negras,
influenciados por Márcio. Guilherme, porte nobre e atlético, optou por
engenharia; Débora, a doce Débora, amável, simples e de uma beleza angelical,
optou pela pediatria. Constança, a mais alegre e desinibida, entrou na
faculdade de letras, pretende ser professora universitária, defender teses. A
intelectual do grupo...
A realidade é dura, crua, dolorosa e imperfeita, essa é a
natureza da realidade e justo por isso, refugio-me nos sonhos. É o meu caminho
de sonhar, sem pensar na realidade, sem pensar no irreal, prefiro sonhar. Vejo
os filhos de Corina e os meus bem encaminhados, transpondo barreiras, vencendo
desafios que chego a me assustar, e me belisco, e me pergunto: isto é real? O
beliscão dói e descubro que eles são reais, os meus meninos, todos
eles...Geralmente a realidade fere, mesmo quando, por instantes na vida, nos
parece sonhos. Chego a tremer quando penso que eles irão definir suas vidas,
sair do regaço do lar, do meu regaço e do regaço de Corina. Eles irão alçar
vôo. Paro de pensar, ponho-me a sonhar...