terça-feira, 13 de outubro de 2015

ALEGORIA DA VELHICE INJUSTIÇADA


     Dói-me no fundo da alma recordar o que passou, vidas vividas em tempos idos, idos infindos e condoídos com aquilo que estou passando agora, é um excesso de passado e de vazio que me torna mais velho do que sou realmente. Em toda a minha vida até agora tudo aconteceu numa rapidez em demasia. Antes, eu vivia, eu cantava e sorria, nem pensava no amanhã. O amanhã veio e sem fim vivo, justamente porque somente os mortos conhecem o fim de tudo isto.
     Vem-me à imaginação,  neste estágio de vida, a idéia de um pequeno mundo submerso onde sempre vivi, desde pequeno, desde o nascimento, onde sempre presenciei geração após geração, pessoas sempre aprisionadas viveram. A arte cinegética, muitos rabejam pela escuridão da noite, perseguem as presas, forçando-as a subir, e com elas sobem sem coragem para descer depois. Outros tantos recorrem a velhos navios, forçando navegação sobre uma lama pesada de um rio repleto de lágrimas. A noite impera em torno de tudo isto. São seres humanos forçados a permanecer sempre no mesmo lugar, imóveis, impossibilitados de olhar a vida com olhos de otimismo e fé, vítimas de uma força estranha gerada pelos próprios. Uma réstia de luz provinda de uma abertura qualquer penetra naquele recinto, ensejando, através da fraca luz, o que se passa naquele interior. Este brilho que entra é reflexo de uma fogueira ardente produzindo luz e calor para os detentores do poder supremo que estão lá fora. No extremo, lá dentro, é maioria que impera, sem império, sem tempo adverbial ou conjunção subordinativa. Não existe explicação. Entre a luz e os prisioneiros, há um caminho ascendente, íngreme, existindo um obstacular impedimento, como se fosse a parte fronteira de um palco de palhaços e marionetes. Desfilam atos e fatos desta mesma gente aprisionada.
     Hoje é o dia do trabalho. Primeiro dia de maio, mes das flores, mes de Maria, primeiro dia estressante, mentiroso e cruel; aprisionados, os prisioneiros em carreio, cabisbaixos se deixam levar. Festejar o que? O que esperar daqui para a frente? Enquanto isso, a fogueira arde, incendeia lá fora, escândalos se sucedem, injustiças se cometem e a desordem prolifera. Goethe escreveu: "Prefiro uma injustiça a uma desordem" mas, o que dizer se ambas se irmanam neste Brasil infeliz?
     "Não é bem assim", dizem uns, "existem muitos ricos", exclamam outros, "as televisões noticiam muitos brasileiros viajando para o exterior" protestam os demais. Primeiro de maio festeja o trabalho neste palco planejado de pessoas robotizadas, estátuas e animais bem tratados por madames ricas e pretenciosas, desfilam suas fantasias para quem gosta de riquezas, vaidades, frivolidades estampadas diante de olhos famintos, remelentos e sem viços. Para estes, são dias inúteis, são passeios ou caminhadas improváveis...
     Primeiro dia de maio, obtuso proceder, sucessivas injustiças cometidas são, honestidade pervertida, sem força para trabalhar, o bem inexiste; jovens insensíveis, herdeiros de podres poderes, cultura do corpo, regidos pelo consumismo, buscam o brilho, a fortuna, a sorte ocasional, o ganho fácil. Daí a desonestidade se manifesta, cruenta festa à custa dos outros, a banalização da fé em Deus.
     Cervejas, carteados, bancos de praça, burlam a morte os velhos próceres de outrora, desamparados de certos vocábulos, margeiam uma sociedade em decomposição. Engasgam-se de tanto falar porque longe dali perderam o poder de decisão, perderam a voz, são desrespeitados. Cada vez mais a aposentadoria é minguada, direitos lhes são retirados por um governo malsão que os maltrata; friamente são postergados a ínfimos planos de prioridades. Acordam-se com bocas amargas e muita angústia em corações cheios de amor ainda. Procuram corrigir esta injustiça com prazer, mas como, se prazer, neles, inexiste? Para os pobres aposentados deste Brasil de hoje, lhes são imposto sofrer um castigo irônico. Ou é isso, ou é uma cruel distração por parte deste governo que se diz "governo dos trabalhadores"
     Olho-me no espelho, oh espelho infame! O que vejo refletido em meus olhos? A velhice? Isso não importa. O peso dos anos pesando sobremaneira? Nada disso. Vejo e reflexo da dor, do desencanto, do desespero. O mundo esqueceu de mim, neste primeiro de maio principalmente. Com exatidão, mergulho do céu, à noite, preferencialmente, como uma ave de rapina, agourenta e faminta. Faço  parte de um coral que clama e protesta, vozes fracas, transeuntes passam, nem escutam o nosso clamor, ou temos cara de Sherazade? Não importa, amanhã eles envelhecerão também...
     O que hoje há de falso no Palácio do Planalto cuja verossimilhança maltrata tanto o aposentado brasileiro? Vários octogenários  com quem conversei, estão convencidos de que sempre existiram ameias espalhadas pelos ministérios em Brasilia onde se escondem guardiões prontos a massacrar os pobres aposentados desta nação. Os  velhos miseráveis, de uma miserabilidade instituída, tentam me convencer a respeito desta verdade verdadeira, traiçoeira e assassina: no período hibernal da existência nada de notável existe, ou nada procura existir o menos possível. No Brasil, os pobres velhos vivem largos anos prisioneiros deste terror chamado governo federal.
     Apesar de tudo, Feliz dia do Aposentado por extensão, porque o dia do Trabalho é o primeiro passo para uma aposentadoria infeliz.
Carlos Lira
     

Deve-se temer a velhice, porque ela nunca vem só. Bengalas são provas de idade e não de prudência.
 

terça-feira, 6 de outubro de 2015

DIA DE CHUVA

"Você diz que ama a chuva, mas você abre seu guarda-chuva quando chove. Você diz que ama o sol, mas você procura um ponto de sombra quando o sol brilha. Você diz que ama o vento, mas você fecha as janelas quando o vento sopra. É por isso que eu tenho medo. Você também diz que me ama"
William Shakespeare

Chove muito, muito chove pelo mundo afora onde vejo o mundo que me alcança, a dança dos pingos sobre o asfalto num sonoro repicar, repetitivo, triste, sem sol, faz-me lembrar... De tantas coisas lembro-me de vez da vez primeira, de coisas perdidas nas brumas do tempo, que sem tempo para algo mais, prendo o tempo em meu recordar... Uma vez ou outra o vento do mar vai açoitando os coqueiros, as árvores e tudo que vem em frente, açoita também o meu recordar... Na rua lamacenta o trânsito escorre pelo sinal aberto, sem buzinas, até parece  existir um toque de respeitoso silêncio daqueles que ao volante se quedam, e condizem com a espetacular outridade pelo dia que chora... Ah pensamento meu que pensa... De onde vens saudade infinda, acrescida de fugaz remanso ainda, sobranceira, te beiraste sobre a neblina, umedecida por meu pranto mesmo assim. Não quero fugir deste momento solene que domina a mim, a outros, e a oportunos sofreres. Cumulus nimbus se acumulam porque muita chuva vai ter de mais verter, é esta a ordem, é este o clima que agora clama em diretas proclamas: é tempo de espera, em seguidas esferas, restamo-nos nós ao sabor do frio que ora se avizinha...
A meu saudoso amigo Armando Pacheco Filho, desde a faculdade me aturou e a ele aturei também, poeta e escritor que há um ano nos deixou.
Carlos Lira
Agora escuta esta musica, é tão triste como está sendo este dia.

www.youtube.com/watch?v=yAx2CIHyd9Q
21 de ago de 2011 - Vídeo enviado por plakların savaşı
Jean Musy - Clair de Femme 1979. plakların savaşı. SubscribeSubscribedUnsubscribe 10,70310K ..

https://www.youtube.com/watch?v=yAx2CIHyd9Q

clira

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

HOTEL LINDA DO ROSÁRIO - cap I

HOTEL LINDA DO ROSÁRIO
(PARTE UM)



“O amor é eterno é o amor impossível. Os amores possíveis começam a morrer no dia em que se concretizam”.
Eça de Queiroz

O dia dos namorados é sempre um dia em que se festeja o amor em tom maior. Dia do amor, dia de amar o bem de amar. Porque faz bem amar na proporção de receber o amor de quem festeja o bem em nos amar.

"Grava-me, como um selo em teu coração, Como um selo em teu braço. Pois o amor é forte, é como a morte. Suas flechas são como flechas de fogo. Uma chama do Eterno”.
(Ct 8,6)  

Eis como se compõe o dia dos namorados, transposto inteiramente da linguagem visual de um cartão postal para a da poesia de Salomão. Porque no cartão postal uma bela mulher de cabelos ondulados e modos impudentes agarra o amado amante pelo ombro com a mão direita, enquanto outra, de cabelos louros, com gesto casto de sua mão esquerda faz apelo ao coração do objeto amado;  enquanto isso, do alto, um menino arqueiro, alado, está prestes a lançar flecha em chamas ao outro ombro do rapaz. Imaginando a cena deste cartão postal, não se ouve voz dizer: "Eu te encontrei, meu amor" ou outra: "Aquele que me procura me encontra". Não se reconhecem a voz da sensualidade, a voz do coração e a flecha de fogo do alto, do qual fala o rei Salomão.
     Amar em sua totalidade é praticar o voto da castidade que é o fruto da obediência e da pobreza. A escolha ditada pelo amor é de alcance maior do que o vício e a virtude. Aqui se trata em escolher a via da Obediência, da Pobreza e da Castidade ou escolher a via do Poder, da Riqueza e da Luxúria. Em essência, os três votos são recordações do Paraíso, no qual o homem estava unido a Deus (Obediência), no qual tinha tudo ao mesmo tempo (Pobreza) e no qual sua companheira era também sua mulher, sua amiga, sua irmã e sua mãe (Castidade). Porque a presença real de Deus acarreta necessariamente a ação de prostrar-se diante Daquele  "que é mais eu do que eu mesmo" - e aqui está a raiz e a fonte do voto de Obediência; a visão das forças, substâncias e essências do mundo na forma de jardim dos símbolos divinos ou Éden significa a posse de tudo sem escolher, sem pegar, sem apropriar-se de alguma coisa particular, isolada do todo - e aqui está a raiz e a fonte do voto de Pobreza, enfim a comunhão total entre o Único e a Única, que abrange a escala de todas as relações possíveis do espírito, da alma e do corpo entre dois seres polarizados, comporta necessariamente a integralidade absoluta do ser espiritual, anímico e corporal no amor - e aqui se encontra a raíz e a fonte do voto de Castidade. Só é casto quem ama a totalidade do seu ser. A castidade é a integralidade do ser não na indiferença, mas no amor, que é "forte como a morte e cujas flechas são flechas de fogo, a chama do Eterno". É a unidade vivida: Té és EU, eu sou TU, somos NÒS. São três: espírito, alma e corpo, que são um, e outros três: espírito, alma e corpo, que são um - três mais três fazem seis, e seis são dois, e dois são um. Tal é a fórmula da Castidade no amor. É a fórmula de Adão-Eva. Ela é o princípio da Castidade, a recordação viva do Paraíso. O amor é forte como a morte, isto é, a morte não o destrói. Por que o amor não é mais forte que a morte ou mais fraco que a morte? Se o amor fosse mais forte que a morte, deixaria de ser amor, justamente porque amor se confunde com a morte, isto é, quando amamos deixamos "morrer" a vida de solteiro, por exemplo, para deixar nascer a vida de casado. Se o amor fosse mais fraco que a morte, também deixaria de ser amor e se deixaria dominar pela paixão ou outro sentimento qualquer, distanciado do que vem a ser amor. A morte não destrói o amor porque ela não pode fazer esquecer, nem fazer cessar de esperar. A arte do  encontro é peremptório quando descobrimos que estamos cercados  de inúmeros seres vivos e conscientes, visíveis e invisíveis. Embora saibamos que eles existem realmente e que são tão vivos como nós, parece-nos que eles existem menos realmente e que são menos vivos do que nós. Na percepção intensa da realidade, para nós, somos nós que vivemos, enquanto os outros seres, em comparação conosco, parecem-nos menos reais; a sua existência tem mais da natureza de uma sombra do que da realidade completa. O nosso pensamento nos diz que é uma ilusão, que os seres fora de nós são tão reais como nós; mas é inútil, porque, apesar disso, nós nos sentimos no centro da realidade e vemos os outros seres como que afastados desse centro. Qualifica-se essa ilusão de "egocentrismo", de "egoísmo" ou  de ahamkara ("ilusão do eu") ou de "efeito da queda primordial", nada disso tem importância, uma vez que nem por isso ela cessa de nos fazer sentir-nos como mais reais do que o outro. Ora, sentir alguma coisa como plenamente real é amar. É o amor que nos desperta para a realidade de nós mesmos, para a realidade do outro, para a realidade do mundo - e para a realidade de Deus. Nós nos amamos sentindo-nos reais. E não amamos - ou não amamos tanto quanto a nós - os outros seres que nos parecem menos reais. Ora, duas vias, dois métodos bem diferentes podem libertar-nos da ilusão de "eu vivo - tu sombra", e a escolha cabe a nós. Uma  consiste em extinguir o amor a si mesmo e em tornar-se "uma sombra entre as sombras", é a igualdade na indiferença. Eu sombra - tu sombra. A outra  via ou método consiste em alguém estender aos outros o amor que tem a si mesmo, a fim de realizar a fórmula: eu vivo - tu vivo. Trata-se de tornar os outros seres tão reais como ele, isto é, de amar o próximo como a si mesmo. Porque amor não é programa abstrato, mas substância e intensidade. Baseado neste tratado é que me proponho a narrar um conto maravilhoso, transcendente, íntegro porque foi correto, absoluto porque foi único. À medida que este conto vai caminhando à seu final, o leitor poderá formular um julgamento se este amor entre Jayme e Irene é "eu vivo - tu sombra", ou "eu sombra - tu sombra" ou "eu vivo - tu vivo".

Há 34 anos que aquele quarto respira amor. Hotel Linda do Rosário, linda para amar um amor lindo, verdadeiro e eterno. Ternos momentos vividos Jayme e eu: Jayme, entre o meu amor e o amor que ele nutria por mim, adentrou em meu coração apaixonado, nele se instalou e vivemos lindos momentos de ternura e beijos. Aquartelados naquele  recanto escolhido por nós, no centro do Rio de Janeiro, próximo aos nossos trabalhos, servia de palco para aquele amor de luz. Aquelas paredes, testemunhas vivas dos nossas respirações rápidas, entrecortadas de gemidos e  beijos, guardam o segredo do nosso silencioso amor. Hotel Linda do Rosário era o ponto do nosso encontro, no mesmo andar, no mesmo quarto, no mesmo piso, no mesmo ar e na mesma cama. Jayme alugara aquele quarto exclusivamente para os nossos encontros. O trânsito do centro da cidade, na hora do almoço, na hora do nosso amor, silenciava, dando lugar aos sons repetitivos a pequenos intervalos dos pássaros, a pleno meio dia de um sol escaldante, lá fora, é claro, porque em nosso quarto, aquecidos, Jayme e eu vivíamos a intensidade do encontro que sempre aconteceu e sempre viveu em cada um de nós. Sinto, se o abraço, um coração a pulsar. Será o meu. Será o de Jayme ou será o do quarto a nos esperar? Pouco importa. Faz-me bem amar aquele homem que me ama com fervor. Quando estou com ele, sinto-me segura, cheia de esperança e guardo dentro de mim ótimas recordações deste amor que me inebria.
     - Irene, costumo pensar neste nosso esconderijo como sendo um velho  barco cortando a custo  um rio pardacento e  cheio de lama. As paredes nuas  e pintadas de um verde suave do quarto, eram como se fossem uma grande floresta.  A escuridão de uma  noite tempestuosa a nos envolver. - Jayme disse isto e baixou a voz. Apontou num gesto vago os vagos recantos do quarto penumbroso devido as janelas estarem fechadas preservando a nudez apaixonada do casal cheio de amor - este recinto está cheio de vozes, as nossas vozes, neste meu velho barco.

https://www.youtube.com/watch?v=HCPkNOAeoOY

HOTEL LINDA DO ROSÁRIO - cap II


HOTEL LINDA DO ROSÁRIO (PARTE DOIS)
DANÇA CIGANA 
  
 Formávamos belos casais: Corina e Jayme; Irene (eu) e Márcio. Corina e eu éramos vizinhas, morávamos em Bangu, perto da fábrica de tecido. Com a mesma idade, fomos nascidas e criadas na mesma rua. Muita gente pensava que éramos irmãs. Corina, após o curso ginasial, não quis continuar os estudos, dedicou-se à pintura e artes manuais. Sempre me interessei pelos estudos e pela dança. O meu pai sempre me incentivou para o estudo e para me tornar bailarina do Theatro Municipal. Consegui concluir o curso como normalista, desisti do ballet por falta de tempo. Corina e eu frequentávamos, juntas, e mais alguns amigos, a saraus e festas. Durante o carnaval, fantasiadas, o baile no clube da Mesbla, na Cinelândia, era o local onde nos divertíamos durante os festejos momesco justamente porque Corina trabalhava nesta loja. As nossas mães nos faziam companhia, vinhamos de trem até à Central do Brasil, depois, sorridentes, nos deslumbrávamos com a originalidade das fantasias dos foliões, com os desfiles das Escolas de Samba na Avenida Presidente Vargas, os blocos na Avenida Rio Branco e o famoso Baile do Municipal, realizado no Theatro Municipal, na terça feira gorda.  Em frente ao theatro, uma passarela toda iluminada servia de palco para que os concorrentes vencedores do concurso de fantasia desfilassem suas criações e fossem mostradas a um público delirante que se acotovelava desde cedo aguardando o resultado final. Evandro de Castro Lima e Clovis Bornay encarnavam reis, imperadores, figuras mitológicas e lendárias, ostentando riqueza e originalidade. Foi neste momento que Corina e eu nos apercebemos que estávamos sendo observadas por dois belos rapazes em meio aquele aglomerado humano. Em pouco tempo, depois da paquera, veio a aproximação, um bate papo sobre aquele ambiente carnavalesco, o convite a irmos juntos ao baile da Mesbla, a aceitação dos dois rapazes e tudo aconteceu como se fosse um sonho, um conto de fadas. Corina namorava Jayme, eu namorava Márcio, com a aprovação das nossas mães, dançávamos o amor que nascia. Tudo perfeito, tudo certinho. A luz de um sorriso galante por parte de um dos nossos pretendentes era o suficiente para iluminar as nossas almas. Primeiro beijo furtivo, segundo beijo, terceiro... mais dança, mais bate papo... agarra agarra na magia frenética da música carnavalesca... mais beijo... Enfim, a noite deslizou rapidamente, o baile terminara, promessa de novo encontro, endereço anotado, felicidade firmada e namoradas nos tornamos daqueles guapos rapazes. Pouco sabíamos a respeito deles, mas o suficiente para sentir que eram de boa estirpe.
    Apesar de negar para mim mesma, a verdade é que depois de muito tempo sem um namoro sério, sozinha, eu estava completamente envolvida por aquela aventura amorosa... e a recíproca era verdadeira sim... Tudo lindo e perfeito tanto para mim como para Corina, sendo esta mais empolgada que eu naquele amor que nascia...
     Os dias se sucederam, os encontros aconteciam, mais e mais os nossos relacionamentos recrudesciam - Márcio e eu; Jayme e Corina.

     Eu estudava no Instituto de Educação, estava perto da formatura e, como sabia dança espanhola e sapateava muito bem, fui escolhida para abrilhantar uma festa de despedida, organizada pela direção do Instituto. No auditório estavam a minha família, Corina e sua família e os nossos respectivos namorados. Após várias apresentações das alunas, chegou a minha vez de me apresentar no palco. Ao som de uma música cigana, teve início a minha apresentação. Foi um começo tímido e temeroso. À medida que se desenvolvia a música, fui dominada por uma energia cigana, um frenesi incontrolável, me deixei transportar ao reino da música, a sensualidade aflorou, não era eu quem dançava, era uma força estranha, era um calor que me tomava o corpo e eu me deleitava naquele gozo incomum. Voltei à mim aos últimos acordes daquela música vinda do além. A platéia, contagiada, de pé aplaudia a minha apresentação. Rosas vermelhas me foram oferecidas e os pedidos de bis se avolumavam. Por três vezes dancei aquela dança decisiva para o meu futuro, eu sentia em meu íntimo que depois daquele evento a minha vida tomaria um rumo diferente. Ah, por que aquilo foi acontecer? Hoje, distanciada dos sucessivos acontecimentos, não me arrependo daquele gesto extremo. Fui feliz na medida certa: hoje eu sei o quanto fui feliz apesar dos rumos tortuosos que tive de tomar.

     - Irene, não tenho palavras para dizer-te o quanto és encantadora! - entusiasmada, Corina pronunciara este elogio.

     Após a apresentação, os cumprimentos se sucederam e me tornei feliz como nunca! Márcio, com os olhos arregalados, surpreso, mal continha a emoção:
     - Amor, você é a mais bela mulher que se encontra neste recinto; você é a mais bela do mundo!!!

     Não sei... mas faltava algo mais... faltava escutar mais elogios? Fui tão elogiada. Será que espero ouvir a voz de algum anjo ou algo semelhante? Naquele momento eu não sabia definir o que faltava até que Jayme surgiu, propositadamente, foi o último a me cumprimentar. Nada me disse, nada pronunciou, nada falou mas o seu silêncio me perturbou... Ele disse tudo: o azul de seus olhos me fulminou completamente, como se me dissesse:
- Você dançou somente para mim...

     Fiquei ruborizada, o verde dos olhos meus se sentiram dominados por aquele olhar dominador. Naquele momento senti que Jayme era especial para mim.
     Tratei de sufocar aquele sentimento que me dominava, afinal, Márcio era um lindo rapaz, talvez mais belo que Jayme, tinha um futuro brilhante nas forças armadas, era inteligente e de bons sentimentos. Jayme, herdeiro de uma rica fortuna, era proprietário de uma cadeia de farmácias. Com certeza, Jayme me inflamava muito mais, tinha mais fogo, sabia me dominar como ninguém. Fiquei com medo de Jayme...
     Os dias transcorriam tranquilos e radiosos para Corina que estava ultimando os preparativos para o seu casamento com Jayme nos primeiros dias do ano de 1952. O seu amor jorrava na direção certa de seu escolhido e, através desta escolha, irradiava-se em todas as direções. "Para fazer ouro é necessário ter ouro", dizem os alquimistas. O equivalente dessa máxima em relação à Corina é que para amar a todos é necessário amar alguém, Jayme era o seu grande amor.

     Após o casamento, Carina irá residir na Tijuca, onde está instalando o seu futuro lar. Nós duas e algumas pessoas amigas estávamos atarefados na arrumação da casa, nos preparativos da festa e da cerimônia de casamento. Após pedir demissão do trabalho na Mesbla, Corina se dedicara exclusivamente aos preparativos daquele evento que selará a sua união com Jayme que é o ser mais próximo desde o começo, a sua alma-irmã desde toda a eternidade, a alma gêmea da sua alma, que contemplou a aurora da humanidade. A aurora da "sua" humanidade que se eternizará através dos filhos, dos netos e das gerações que se lhe advirão. Amar assim é bom, faz bem à vida, faz bem à alma. Corina irradiava um estado de felicidade porque amava sem reserva. Era um amor inteiro, completo e eterno. Jayme compreendia que "ser é amar". "Estar só é amar a si mesmo", conforme ele dizia à sua "amada" Corina. Em realidade, eu sempre soube que não é bom a pessoa amar somente a si mesma. É preciso amar o outro, uma parte do outro amada como a si mesma - (osso dos meus ossos e carne de minha carne).


     Imediatamente, face a estes acontecimentos, procurei aprisionar esta atração que sentia por Jayme em uma jaula de ferro, negando-me a revelar até a mim mesma este sentimento devastador. Impusera este castigo por ter-me negado a lutar por um amor que era o amor de minha melhor amiga. Desafiei aos pensamentos invasores que me atormentavam, afoguei as máguas para não ceder aos impulsos. Entretanto, incapaz de escapar, não demorei a compreender que o preço de meu silêncio tinha que ser... a vida. Após alguns anos de silêncio, neste exílio voluntário de renúncia, a realidade me resgatou da jaula onde me encontrava com a finalidade única de arrancar-me este segredo. E quando a realidade me resgatou de onde eu estava prisioneira, acreditei que era o próprio arcanjo Miguel que tinha vindo para levar-me ao céu. Divididos entre o crescente amor que nascia em nossos corações, Jayme e eu, sofríamos por causa da lealdade que juramos aos nossos respectivos conjuges,  apaixonados, nos víamos presos em uma rede de intrigas e perigos dos quais parecia impossível escapar.


http://www.youtube.com/watch?v=v6XTrIyoDDw&feature=related

HOTEL LINDA DO ROSÁRIO - cap III

HOTEL LINDA DO ROSÁRIO (Parte três)
A NOIVA
 (Parte Três) 

     
Para Corina, seu matrimônio com o atraente carioca Jayme marca o começo de uma vida nova e maravilhosa. A sua compreensão de que o amor - a realidade de Jayme - brotou e poderá depois manifestar-se e diversificar-se. Este é o calor de um amor especial, fecundo e cheio de promessas. Trata-se de um jorro qualitativo do amor que se refletirá no amor aos filhos, refletido, por sua vez, o amor dos filhos por ela e por Jayme, refletido ainda no amor dos filhos entre eles, refletido enfim no amor a todo o parentesco dos seres humanos e, além do parentesco imediato, por analogia, no amor a tudo o que vive e respira... é o Ágape...

     Será que o mesmo sentimento domina o coração de Jayme? Tenho minhas dúvidas... O seu olhar é traidor, ele me lança um olhar apaixonado que me deixa completamente sem ação... Por causa disso, evito a sua companhia, procuro outras companhias e outros olhares desimpedidos... Prefiro amargar uma possibilidade desfeita do que provocar uma trágica e imerecida desgraça entre as nossas famílias.  Não posso fazer ouvidos surdos às cruéis acusações e rumores possíveis caso cedessa à atração que Jayme exerce sobre mim.  Não posso negar essa terrível atração... Corina, que sabe ser inocente, desconhece existir essa nuvem negra que envolve o seu casamento, e não põe em perigo a felicidade com mentiras. Procuro me opor à traição com todas as fibras de meu ser, a fim de conservar a felicidade ameaçada de minha querida amiga, preservar a confiança que ela deposita nas pessoas que ela adora - Jayme e eu - e assegurar uma felicidade completa para todos nós. Procurarei fazer de tudo para não provocar a aproximação de Jayme. Bem sei que com aquele corpo e aquele brilho no olhar será muito difícil não ceder à tentação. Os opostos se atraem? A rudeza do momento obrigava-me a afastar-me da tentação. Eu sentia que ele tinha um objetivo na vida: descobrir se eu sou tão certinha e recatada quanto parecia. Oh Deus, isso é odioso e ao mesmo tempo fascinante!

     Sinto dificuldade em descrever a radiosa beleza de Corina, vestida de noiva, entrando na Igreja da Candelária. Os arranjos florais, as luzes, a sonoridade musical escolhida para aquele evento, tudo enfim, contribuiu para a beleza daquele momento como se fosse um conto de fadas. A noiva Corina, Corina amiga minha, irmã e parceira, tão linda e faceira em seu vestido branco de noiva, por inteira rendada estava, tecido frances, que sem vez, não a deixava parecer banal! Linda, diziam as pessoas presentes, linda, exclamavam os anjos, angelical suspiravam os faunos. Sem parecer que as frases proferidas fossem repetições das frases utilizadas em outros casamentos, o momento era único para todos nós que amávamos aquela noiva singular. Era um sentimento mágico, um preenchimento de coração, uma exaltação ao amor que ali selava um pacto, uma ótima vibração em ver Corina vestida de princesa... Linda, radiosa, florescente, e ainda mais feliz que antes. Um brilho inexplicável nos olhos, traduzia tudo o que ela sentia mas que era impossível traduzir esse sentimento em palavras... Com certeza, as fotografias em nada farão jus à beleza que Corina irradiava, não registrarão a nitidez daquela bela visão, o pulsar de seu coração e jamais alcançarão a leveza de sua alma em flor. Exultante, feliz, um ar de timidez, Corina, cresceu, ficou enorme, agigantou-se, devido à felicidade que transbordava... Era um estado mais do que feliz (ainda não descobriram uma palavra para descrever o estado superior à Felicidade). Corina percorria a nave central da igreja, começava, ali, a percorrer um novo caminhar, ao lado de quem escolhera para amar.
     E  Jaime? Até que enfim o seu dia de noivo chegou... em um sábado foi o casamento, um belo dia de verão, céu azul, fazia calor, mas a temperatura da igreja era amena. Soube depois que o seu dia fora super movimentado, um dia com irmãos e padrinhos, almoço num restaurante qualquer, uma conversa qualquer, uma piada qualquer, postura típica de um homem que vai contrair matrimônio. Tudo simples, em conformidade com a sua maneira de simplificar as coisas.

     Ao entardecer, lá estava ele, lindo, destemido, fiel à decisão de casar, super calmo, sem demonstrar nervosismo, presente à tudo o que antecedia à entrada da noiva na igreja: os convidados, os padrinhos, reparou toda a decoração e prestava atenção em todas as músicas.  Ver tantas pessoas queridas no mesmo lugar, felizes, sorridentes, as palavras emocionantes do padre, foram-lhe gratificantes. A reação foi positiva quando visualizou a beleza de Corina entrando na igreja, sendo conduzida pelo pai, acompanhada pelas damas de honra. Procurou com o olhar o amigo Márcio e a minha presença. Naquele momento, a minha emoção foi grande: ver Corina feliz e enterrar a grande atração que sentia por Jayme. Sinto-me fadada a uma situação de extrema necessidade: a partir daquele momento, estava privada e sem recurso para desejar o homem que pertencia à minha amiga irmã. Ante a precariedade, só me restava recorrer ao bonito capitão Márcio, que além de belo, me amava com ardor. Atrás de sua aparência atlética e destemida, o jovem rapaz esconde um coração terno e sensível, e de imediato se presta a marcar a data do casamento comigo. Eu sabia que os seus sentimentos por mim eram profundos, e o fraternal afeto dos primeiros dias de namoro se converteu em paixão e desejo...

     A recepção, após a cerimônia de casamento na igreja, foi em um salão de festa ricamente ornamentado com motivos relativos ao evento. Muitos convidados, homens e mulheres elegantes, sorridentes, cumprimentavam os noivos. Denner desenhou o meu vestido: bege, tinha o corte princesa, acompanhado de estola escura, feita do  mesmo tecido e luvas longas. A minha beleza foi elogiada e percebia que Márcio se sentia feliz com o meu bom gosto na escolha dos vestidos. Como era verão, dispensei o uso da estola de vison.

     O nosso abraço - Corina e eu - foi emocionante, choramos de emoção. Trocamos palavras de incentivo e, deixamos para depois os comentários sobre a beleza daquela festa. Ao cumprimentar Jayme, senti que, pelo menos naquele momento, ele estava feliz. Não era para menos, a vibração era enorme.

     Uma vez demonstrado como subistância e intensidade, pelo menos naquele dia do casamento de Jayme e Corina, o amor tende a difundir-se ramificando-se e diversificando-se segundo as formas de relações humanas nas quais ele entra. Será que esta apresentação analógica da religião condiz com a verdade? Acredito que sim. O inverso é a doutrina pansexual de Sigmund Freud. Porque em Freud é a libido ou o desejo sexual que é a base de toda atividade psicológica humana e que constitui a sua energia motora, a qual - mediante a "sublimação" ou direção por canais diferentes da satisfação do desejo sexual - torna-se a força criadora social, artística, científica e religiosa. Mas, o amor inteiro, está para o desejo sexual como a luz branca contendo as sete cores está para a luz vermelha. O amor compreende toda a escala das cores não diferenciadas, enquanto a "libido" de Freud é apenas uma cor isolada e separada do todo. O desejo sexual é apenas um aspecto do amor - o aspecto refletido pela parte do organismo físico e psíquico. Além do desejo sexual existem, pois, seis aspectos, cujo alcance não é menor e cuja doutrina Freud ignora ou cuja existência nega.
     Karl Marx, impressionado pela verdade parcial, reduzida à sua base simples, dizia: é preciso comer para se poder pensar, elevou o interesse econômico a princípio do homem e da história humana. Sigmund Freud impressionado pela verdade parcial, segundo a qual, é preciso primeiro nascer para se poder comer e pensar e para nascer é necessário o desejo sexual, elevou este último a princípio do homem e de toda a cultura humana. Marx via a base do homo sapiens como homo aeconomicus (homem econômico), Freud viu a basa do homo sapiens como homo sexualis (homem sexual).
     Por enquanto, o princípio freudiano irá determinar o destino matrimonial de Corina e Jayme.

     Sinto-me como derrotada pelos Demônios da Ira, mas lutarei para recuperar o meu equilíbrio emocional, sem nunca desfalecer, sem nunca ser enganada para entrar na guarida de um homem sedutor. Bem sei se ceder à tentação serei levada à cama, perderei tudo pelo que luto incessantemente. Sabine a Feiticeira das Ilusões, julgando-se segura e determinada, faz muito que aceitou seu destino: tentou seduzir o rei demônio. Assim que beija o feroz guerreiro, dá-se conta de que a sedução deixa de ser o temido castigo. Quando começam a apaixonar-se, um dos dois se verá obrigado a realizar o sacrifício definitivo. Se eu tentar agir como Sabine, o que farei? Renunciarei a minha vida feliz com Márcio ou cederei ao rei demônio de meu viver, Jayme?

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HOTEL LINDA DAS ESTRELAS - cap IV

HOTEL LINDA DO ROSÁRIO (PARTE IV)
     Passei a simpatizar com paixões impossíveis. Tornei-me especialista nisso. Afinal, aprendi a me administrar, cuidando-me para não exagerar na dose, tornei-me dosada, atenta me  atentei para vigiar os meus passos, policiando  meus anseios com a finalidade de  viver uma vida centrada e costurada no bem viver, sem alcançar a mais alta expressão de amar justamente porque esta alto grau de amor só o conquistaria com outro bem, bem sei com quem, não com Márcio, isto é verdadeiro, porque com ele vivo um  amor derradeiro, rotineiro e sem viço.  Aprendi a criar enredos, a guardar segredos, multipliquei personagens, dei-lhes vida, elas estão espalhadas pelo mundo afora, em meu mundo criado pela  imaginação. Fiz amizade com as minhas valentias, em atos heroicos me aportei, aprendi que ter  coragem não contagia, a covardia, sim. Gostaria de reger uma orquestra de pássaros enquanto o sol surge no nascente. Deus deu-nos o sonho para que possamos criar quimeras...

     Um ano e meio depois do casamento da amiga Corina com Jayme, pelo mesmo processo de casamento passei com Márcio. As  mesmas emoções vivenciamos , grandes momentos inesquecíveis  e outros tantos conquistaremos . Assim é a vida que levarei  em minha  missão de absorver  a vida por mim escolhida   Marcio comprou uma belíssima casa no Grajaú, distante alguns quilômetros da residência de Jayme e Corina. Foram frequentes as nossas visitas,  Jonas, o primeiro filho do casal amigo, era uma criança linda, simpática e nosso afilhado. Corina estava grávida novamente. O que mais encantava em minha amiga era aquela contagiante alegria de viver, ela era feliz e nos tornava felizes também. O desvelo pelo marido, a carinhosa atenção dispensada à criança, tudo nela rescendia amor. Márcio e Jayme saiam para conversar ou jogar sinuca na sala de jogos contígua à sala principal de nossa residência e, nós duas, nos confabulávamos acerca do dia a dia de casada e suas implicações. Nessas ocasiões, pouco ficava sozinha com Jayme, evitava conversar  com ele. O mesmo não acontecia com Corina e Márcio: ambos eram simpáticos, cordatos e sempre existiam assuntos a serem debatidos entre os dois.  Às vezes, em meus pensamentos vadios, as comparações apareciam, imaginando a certeza de casais bem definidos: Jayme e eu em vida plena, Corina e Márcio em vida amena. Não se deve procurar acertos no concerto de seres que se amam. Corina ama somente Jayme e Márcio ama somente a mim e isto é o bastante. Se os três soubessem o que penso, olhariam para mim como se eu fosse criadora de monstros. Chove lá fora, uma chuva fina, persistente, fria a rua, noite sem lua, a escuridão, chove tristeza, venta angústia, na incerteza de ser, sonolenta, não vejo estrelas para sonhar... Dói-me na alma este excesso de coisas não realizadas, restando apenas o vazio... Sim, estou vazia, o que fazer? Fiz. Estou grávida!  Corina e eu estamos na fase de engravidar. Eu pro lado de cá, ela do lado de lá. Que beleza! As nossas casas tomadas de berços e brinquedos, os filhos, crianças lindas, babás, peitos entumescidos de leite, dar de mamar, a mais pura maternidade que povoa este mundo de Deus. Corina, quatro filhos: Jonas, Guilherme, Débora e Constança. Eu três filhos: Carmen, Leandro e Vicente.

     Acho que o paraíso aqui na terra é exatamente isto que vivemos Corina e eu: a camada fundamental  de nossa alma e uma esfera cósmica. Este Paraíso é encontrado tanto no ênstase (nas profundezas, dentro de si, introspecção) como no êxtase nas alturas fora de si). Ambas somos as mulheres do dia e as mulheres da noite. O Paraíso sendo a região do começo ou dos princípios, é também a região do começo da "Queda" ou do princípio da tentação, isto é, do princípio da transição da obediência para a desobediência, da pobreza para a cupidez e da castidade para a impudência... Impudência... Tenho medo da queda... Tenho medo de lembrar que existo, que existe um passado não vivido, pendente... Pendência... Um passado morto ou que tento matar, mas ele existe muito vivo em minha memória, não intelectualmente, mas psiquicamente substancial.  Compreendo perfeitamente que não adianta tentar fugir, se procuro mudar, este passado me acompanha, ele é visceral. Nada perece e nada se perde no domínio psíquico: a minha história essencial - Jayme em minha vida - isto é, as alegrias que poderiam ter existido  e me foram negadas e os sofrimentos reais que me foram outorgados, as religiões e as revelações reais do passado continuam a viver em cada um de nós, e vive em mim, e em mim é que se encontra a chave da história essencial de minha vida com a vida de Jayme. Procuro esconder essa chave. Por enquanto, voltada estou ao trabalho de professora numa escola pública, voltada estou ao lar, à educação dos filhos que crescem com graça e beleza. Vou deixar o medo para depois...
     Bem sei que o medo me acompanha, é disto que tenho medo. As alegrias que me foram negadas... quem me negou? As tristezas que me foram outorgadas... quem me outorgou? Preciso parar para pensar e encontrar as respostas, as minhas respostas livre da ajuda de qualquer pessoa extranha ao meu drama pessoal, ninguém!
     No Paraíso houve três tentações. Eis os elementos essenciais das três tentações que se estendem à minha vida de mulher que procura ser soberana, mas que se engana até aprender a não poder ser: Eva ouviu a voz da serpente; viu que a árvore "era boa ao apetite e formosa à vista"; tomou do seu fruto e comeu, deu-o também ao seu marodo, e ele comeu... A voz da serpente é o meu lado carente e animal que grita, cuja inteligência é a mais avançada (animal astuto) de todos os seres vivos (animais) cuja consciência  é voltada para a horizontal.  Antes de Jayme, a minha inteligência era pura, era vertical, os meus olhos não tinham ainda sido abertos para o desejo carnal, estava "nua" e não me envergonhava em ser nua, estava consciente das coisas no sentido vertical, das coisas de Deus. Era inconsciente das coisas "nuas", isto é, das coisas separadas de Deus.  Tinha consciência do ideal e do real que me rodeava, era alegre, feliz e namorava a vida. Agora, estou na horizontalidade da consciência, vitimada do realismo puro e simples: o que está em mim é como o que está fora de mim, e o que está fora de mim é como o que está em mim. Agora estou consciente do subjetivo e do objetivo horizontal, vendo as coisas fugindo ao controle de minha mente, sinto-me nua em mim mesma, por mim mesma e para mim mesma. O meu eu exercendo a função da vontade, conhecendo o bem e o mal e me voltando para o mal. È o princípio do poder, que é a autonomia da luz da consciência, são duas vozes que escuto, duas inspirações provenientes de fontes contrárias. Estou cheia de dúvidas...
     Procurava não pensar, não tinha tempo para pensar, eu procura não ter tempo para nada, justamente para não pensar... Parar para pensar? Nem pensar! Procurava tornar a família feliz, "totalmente" ou tolamente feliz. Carmen, o orgulho do pai Márcio, crescia bela, cabelos lisos, tez morena clara, pele aveludada, sorriso fácil, enigmática e sedutora. Adepta das ciências sociais, o campo da sociologia a fascinava. Minha filha era uma exímia bailarina. Leandro, herdou os modos e gestos do pai: alegre, participativo mas responsável com os deveres e obrigações. Vicente, o meu belo Vicente, alegre, sorridente, praticava esportes, exímio nadador e curioso com as coisas ligadas à medicina. Márcio se revelara um excelente pai além de excelente marido. Tenho orgulho da minha família. Os filhos de Corina e Jayme, estudaram nos mesmos colégios que os meus filhos, praticamente foram criados juntos. Jonas, belo rapaz, compenetrado , jovial e muito amável. Estudou no Colégio Militar junto com Leandro, os dois ingressaram nas Agulhas Negras, influenciados por Márcio. Guilherme, porte nobre e atlético, optou por engenharia; Débora, a doce Débora, amável, simples e de uma beleza angelical, optou pela pediatria. Constança, a mais alegre e desinibida, entrou na faculdade de letras, pretende ser professora universitária, defender teses. A intelectual do grupo...

     A realidade é dura, crua, dolorosa e imperfeita, essa é a natureza da realidade e justo por isso, refugio-me nos sonhos. É o meu caminho de sonhar, sem pensar na realidade, sem pensar no irreal, prefiro sonhar. Vejo os filhos de Corina e os meus bem encaminhados, transpondo barreiras, vencendo desafios que chego a me assustar, e me belisco, e me pergunto: isto é real? O beliscão dói e descubro que eles são reais, os meus meninos, todos eles...Geralmente a realidade fere, mesmo quando, por instantes na vida, nos parece sonhos. Chego a tremer quando penso que eles irão definir suas vidas, sair do regaço do lar, do meu regaço e do regaço de Corina. Eles irão alçar vôo. Paro de pensar, ponho-me a sonhar...



HOTEL LINDA DO ROSÁRIO - cap V

HOTEL LINDA DO ROSÁRIO
(Parte V)
Oh Deus, a vida é profunda, e a sua profundeza é como um abismo sem fundo.  Nietzsche sentiu isso e o exprimiu em seu Nachtlied: "Ò homem, presta atenção, ao que diz a profunda meia-noite - eu dormi, dormi - acordei-me de sonho profundo. O mundo é pensado profundamente, mais profundamente do que o dia. Profunda é a sua dor. O prazer é ainda mais profundo do que a canção do coração! A dor diz: passa. Mas todo prazer quer a eternidade, a profunda, profunda eternidade"...

     Ao completar 35 anos de idade, fui transferida para trabalhar em uma secretaria no centro da cidade. Os filhos crescidos, conscientes das suas obrigações e supervisionados por Márcio, não me causavam preocupação. Trabalhava na secretaria das oito horas da manhã até às dezesseis horas, com intervalo para o almoço. Ainda conservava a beleza da juventude, traços fortes e encanto no olhar. Apesar dos três partos, intensifiquei a prática de ginástica para manter o corpo esbelto. Foi aí que tudo aconteceu...
     O setor administrativo da empresa de Jayme e sua família ficava próximo ao meu trabalho. Sempre, ele me esperava na saída para o almoço e fazíamos a refeição juntos. Nos primeiros dias falávamos sobre amenidades e sobre os nossos filhos menores e adolescentes, sobre Márcio e Corina. Até que um dia o assunto versou sobre nós dois. Eu temia que isto, um dia, fosse acontecer, confesso, mas, em meu íntimo,  gostei que essa verdade viessa à tona e eu pudesse me sair bem, recusando todo e qualquer envolvimento.
     - Você é a visão que me aparece frequentemente em meus sonhos, embora o rosto e a figura de princesa não são nada mais que uma vaga sombra em minha mente porque você foge de mim, eu tenho a certeza de que um dia essas visões se converterão em realidade. - estas palavras  proferidas por Jayme me deixaram descontrolada. Fiquei sem argumento porque eu também me sentia atraída por ele. É quase impossível descrever o que se passou em meus pensamentos, perdi o controle das emoções, com os sentidos paralisados, deixei-me levar até onde ele queria me libertar daquele força estranha que me sufocava e me atormentava sem trégua, de uma maneira implacável. Todos os meus conceitos deixaram de existir, os medos caíram por terra e mal conseguira respirar por causa das sucessivas emoções que me tomavam todo o meu ser. Foi um gesto heróico de minha parte ou uma tremenda traição ao pai dos meus filhos? Ou uma tremenda crocodilagem com a minha amiga irmã Corina? Naquele momento nada disso pensei, passou despercebido. A emoção superou infinitamente a razão. Perdi tudo: a prudência, o respeito, o desrespeito, a vergonha, a doçura e o amargor de tantos anos fugindo do óbvio: "um dia iria amar o amor verdadeiro daquele homem que me amava".

     Como que levada pela leveza eólica projetada num barco suave e transcendente, eis-me num quarto de hotel - Hotel Linda do Rosário - abraçando e beijando o homem amado!
     - Eu o amaldiçôo mil vezes por fazer isto, e a mim por querer-te tanto! - eu dizia, com rudeza, contra os lábios de Jayme, entreabrindo os meus com o saber sensual de uma mulher que amava um homem cujo amor proibido só podia ser subjugado pelo desejo. Os lábios se uniram e se separaram com sofreguidão, para se unirem de novo e de novo, até que os nossos corpos se encontraram e se tornaram num só, na magia das polaridades masculina e feminina, dando origem à razão de ser e de existir. Sem perceber, de algum modo cadenciado e sutil, fomos nos desnudando, sem botões e abotoaduras, sem cinto, saia, calça, e demais vestes, eis-me tocando-lhe o tórax. Aos poucos sentia a blusa  deslizando pelo meu corpo febril de desejo, primeiro a pele sedosa na curva do seio, e não fiquei completamente despida porque a sua mão estava moldando o tecido da saia em contato com a suavidade de minha pele. Sentia a mente sobrecarregada, meu corpo era um frenesi de desejo. Milhares de sensações febris, intensas e incomuns me invadiam a alma. Agora eu estava livre para concretizar a vontade de tocar-lhe  a pele, maravilhada com o prazer que eu sentia: um prazer único, indefinido, como nunca sentira antes.  Pressionei-lhe a clavícula com os dedos, a pele de Jayme era quente e suave, e o osso era sólido. Ele possuia um corpo de atleta. Concentrei o olhar na pulsação que se evidenciava sob o maxilar. Perdida no prazer que sentira em tê-lo junto a mim, beijei-o antes de ser lançada no abraço longo da paixão, ardendo em chamas de desejo, e vê-lo responder da mesma forma, beijava-lhe o pescoço, e depois o ombro. Um leve estremecimento de prazer percorreu-me o corpo ao sentir a mão quente que me cobria o seio se afastar, seguido de outro tremor mais intenso e mais visível, quando a mesma mão o segurou por baixo, e o polegar roçou eroticamente o mamilo entumescido. Foram inenarráveis as sensações que sentira naquele primeiro encontro de amor. Agora sei que foram dezesseis anos de namoro para chegar até aquele momento de amor febril. Quando nos encaminhamos para a cama, de lábios colados, estávamos ambos nus, e o toque das suas mãos em minha pele me provocava tanto erotismo que meu corpo estremecia de um prazer selvagem. Através da cortina, uma réstea de luz iluminava os nossos corpos, levando-me a suspirar quando Jayme afastou-me de si para colocar-me na cama, revelando em detalhes o perfil musculoso e forte de macho sedento de amor. Pele dourada, tórax liso, um pêlo fino que formava uma trilha erótica descendo pelo corpo, mostrando-me em meu olhar sedento e curioso o membro rijo na sua ereção. Completamente estonteada, senti o amor pela primeira vez mesmo estando casada e mãe de filhos. Agora, ali, naquele altar de amor, é que senti este misto de admiração e ternura, satisfação em tocar  com desejo e saborear o homem especial e único com muita paixão. Senti que Jayme estava gostando de ser devorado pelo meu olhar apaixonado como todo homem deve gostar de ser olhado pela mulher de seu desejo. Naquele momento senti que era correspondida em todo o amor que sentia por ele, a partir de agora ele era o meu  mais preciso tesouro. Jayme, anestesiado, dizia palavras soltas de encantamento diante de minha nudez totalmente entregue a ele:
     - Meu amor, a sua pele leitosa se sobressai com o bege das cobertas. A cor de seu cabelo, minha amada, combinam perfeitamente com os que lhe cobrem o sexo, tornando-o mais excitante. Gosto de acariciar os mamilos, corados, num tom rosa escuro, prontos para serem sugados neste momento de nós dois.
     Um calor intenso me dominou quando Jayme colocou a mão sobre meu sexo, arqueei o corpo para cima num descontrole voraz. Unidos mais uma vez, naquele ato de amor profundo, segurei-lhe o  ombro pondo as unhas contra sua pele como estímulo. Sentia que este meu gesto provocava-lhe uma leve dor enquanto enfatizava e aumentava a força de sua paixão. Como uma onda avassaladora, a emoção vinha impetuosa e calorosa, inundando todo o seu ser e afastando tudo o que estivesse pela frente. Senti-me dona da situação, tornei-me amante e prostituta, uma bruxa que ditava ordens de comando àquele escravo do desejo, lhe dizia onde ele devia colocar os lábios, as mãos e quais as palavras a pronunciar de poesia e sedução que Jayme pronunciava com tanta paixão. O seu cheiro me inundou a vida: era uma mistura de almíscar e de suor, emanada daquela carne masculina. Eu sabia que a partir de agora, aquele cheiro e cada momento precioso daquele primeiro encontro marcariam a sua vida para sempre. Todas as razões para eu não fazer isso tinham sido abandonadas. Eu sentia uma satisfação plena e quase primitiva de triunfo feminino. A partir de agora ele era meu, completamente meu apesar de conviver com Corina, pois ele levaria em sua carne a sensação de meu amor pleno assim como todos os meus pontos de sensualidade receberam o marca do toque de Jaime, apesar da vida em comum com Márcio. Cada toque que ele me fazia me provocava um novo prazer, estonteante, que me era desconhecido e inexplorado. A experiência que vivera até então com Márcio não me preparara para isso. Tudo era tão novo, tão surpreendentemente delicioso, que o valor de cada instante foi inestimável. Queria demorar-me em cada toque proporcionado pela mão ou os lábios de Jayme, sentir o prazer que eles me traziam, mas ao mesmo tempo estava sendo levada por uma sensação cada vez mais intensa de urgência.


     Supliquei-lhe para que parássemos por ali, já estava tarde, eu tinha os meus compromissos assim como ele tinha os seus. Jayme concordou, mesmo a contragosto. Fizemos a promessa de uma próxima vez e essas vezes se repetiram por mais de trinta anos, sempre mantendo a chama acesa de um amor que nunca acabou.

http://www.youtube.com/watch?v=habWYM364RA

HOTEL LINDA DO ROSÁRIO - cap VI

HOTEL LINDA DO ROSÁRIO
(Parte VI)

     Não há nada mais banal, repetitivo, corriqueiro do que o levantar-se do Sol, e este fenômeno acontece dias após dia... E, no entanto, é graças a esse acontecimento banal, repetitivo, corriqueiro que os nossos olhos - esses órgãos da visão da luz do Sol - vêem as coisas novas da vida. Como a luz do Sol nos torna videntes em relação às coisas do mundo físico, do mesmo modo a luz do sol espiritual - a Graça - nos torna videntes em relação às causas do mundo espiritual. Portanto, a luz é necessária para que se veja tanto no mundo físico como no espiritual. Depois do primeiro encontro íntimo e pleno com Jayme, a luz me veio com todo o fulgor, tornei-me vidente, segura de meus passos e condescendente com os meus erros na certeza de que, a partir de agora, encontrei acertos em meus erros. O mesmo se pode dizer do ar para a respiração e a vida. O ar que nos cerca é uma analogia perfeita da "graça dada gratuitamente". Porque para se viver em espírito é necessário o espírito vivificador, que é o ar da respiração espiritual. No contexto da verdade de minha vida, Jayme é o meu sol, é a minha graça, a minha respiração, a minha espiritualide, o meu tudo...
     Agora, volto para casa liberta, sem peso na consciência, sem drama pessoal, sem o Demônio da Ira justamente porque, depois dos beijos que lhe dei, o encanto foi desfeito e ele se transformou no príncipe real do meu viver. Transformei-me interiormente mantendo a mesma máscara , o mesmo critério utilizado durante os dezesseis anos de namoro e vida conjugal. Descobri que é fácil enganar as pessoas quando existe uma razão imperiosa para fazê-lo. Razões de sobra existem que me forçam a proceder assim: o amor fraternal por Corina, o amor por Márcio, o pai dos meus filhos, o amor por Jayme que é o suporte e a razão de tudo isto.
     Depois do primeiro encontro de amor com o meu amado Jayme, mantivemos a mesma rotina de almoço juntos ou, quase todos os dias, as nossas reduzidas horas de amor no Hotel Linda do Rosário. Sempre à hora do almoço.
     O hotel do nosso encontro, é um imóvel de cinco andares (mais térreo) - onde funciona o Hotel Linda do Rosário, o Café e Bar Correio e a Loja Rosário Placas e Carimbos, fica na Rua do Rosário 55, faz esquina com a Rua Primeiro de Março. Nos primeiros encontros eu disfarçava como podia, temendo um possível encontro com pessoas conhecidas, entrava sozinha e, dentro do edifício, esperava Jayme chegar. O local era agradável, acolhedor. O nosso quarto, o 201, foi alugado por Jayme. Trocou o mobiliário, mandou colocar espelhos, ar condicionado e mandou fazer melhoras no banheiro. Jayme fez questão de ampliar uma fotografia minha, fantasiada de cigana, tirada no Instituto de Educação, no dia em que dancei para uma platéia eletrizada com a minha apresentação. Um dia, ouvi de viva voz, a declaração telepática, emitida por Jayme por ocasião daquela apresentação.

     -Irene, naquele dia, você dançou somente para mim, não foi? - disse ele.
     No segundo encontro, menos tensos e mais ousados, tivemos condições de ver e sentir a reação um do outro. Desde o primeiro dia, e agora confirmei que o coração de Jayme batia forte contra o peito. Qual o motivo de semelhante reação? Descobri imediatamente: como um adolescente na sua primeira experiência, com as mãos trêmulas, uma voz entrecortada, o coração acelerado era por medo de não conseguir controlar as reações do corpo e desapontar-me, deixando-o abatido moralmente. Cada vez mais me encantavam as suas reações: sempre trazia chocolates, Sonho de Valsa, flores ou biscoitos finos. Sempre havia uma rosa a nos espreitar em nossos momentos de amor. Amar e ser amada por um amante atencioso, perfeito, até a consumação do ato, era mérito somente meu. Li todos os romances possíveis que trata de infidelidade conjugal: Otelo, As Relações Perigosas, Madame Bovary,  Ana Karenina, O Primo Basílio, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, O Amante de Lady Chatterley, Voragem, Diários Íntimos, Trópico de Câncer, São Bernardo, Lolita, Perdoa-me por me traíres, Gabriela, Cravo e Canela, Bonitinha mas Ordinária, Pantaleão e as Visitadoras, Hollywood e Trilogia Suja de Havana, e não encontrei uma amante mais amada que eu: sem remorsos ou conflitos. Jayme desenvolvera uma habilidade que se propusera aprender, como parte de sua jornada de viver sua vida em minha vida, além de muitas outras coisas, somente para me agradar. Seu objetivo em me possuir por inteira o forçou a adquirir essa maestria, em vez de se concentrar em ter ele mesmo o prazer sem dividi-lo comigo. Agora, eu sabia, ele estava subjugado por desejos e sensações totalmente novos porque me queria com toda a força de sua alma.
     - Jamais desejei alguém assim, tentei com Corina, fui mal sucedido, ela estava mais voltada aos filhos e menos a mim. Só recebi sobras de carinho.  - dizia-me ele enquanto me acariciava - te desejo de corpo e alma, de uma maneira que és parte de mim para sempre, és uma marca indelével em meu viver! Mesmo quando aquele momento de excitação terminasse, o que sinto por ti  jamais me abandonará. Este sentimento é visceral, é uma febre estranha, sinto-me impossibilitado para impedir este sentimento.

     Deixei-me envolver em suas carícias e senti o tremor das suas mãos quando tocava-me o corpo. Que sensação é esta que me toma o coração, quando sinto sua mão, sem poder dizer-lhe não? Eu tremia de excitação. Fechei as mãos em punho, querendo ser tocada mais intimamente, depois que ele o fez, percebi que aquele gesto não era o suficiente para satisfazer a ânsia que me consumia.   Naquele segundo encontro, superei todas as barreiras que construíra para não aceitar aquele amor proibido, sem força de reação, simplesmente me rendi incondicionalmente aos caprichos deste homem que me envolve. O mesmo Jayme fizera em relação a mim: tentou me evitar à medida que sentia o meu afastamento. Agora, neste momento final de seu conhecimento de si mesmo e de seu profundo amor por mim, aceitara a verdade que estava diante de si: eu, a mulher que o tirara do sério, que o levara a isso, e, sabia com certeza, não existe fórmula para reverter esta situação subliminar. Jayme posicionou-se sobre mim, incapaz de negar a si mesmo esse gesto que lhe provocava um prazer infinito de acariciar-me e de penetrar-me. Recebi-o em meus braços com uma infinita ternura, numa clara demonstração que ele chegara a um lugar que era seu e de mais ninguém. As investidas, os movimentos dos nossos corpos ao se unirem, formava um encontro das metades de um todo. Este seria o nosso destino, a partir daquele momento, e recebemos com muito prazer aquela missão de nos amar eternamente. Esta era a causa de nossa existência. A cada investida firme do corpo de Jayme dentro do meu, me provocava um estremecimento de excitação. Agora me pergunto, como podia ser tão perfeito, tão sublime e intenso o encontro de dois corpos que se amam a ponto de encher-me os olhos de lágrimas, de sentir-me rouca com os gemidos de meu prazer? Entregues às sensações que nos dominava, sentia-me tão sem forças quanto Jayme para resistir à onda de êxtase que nos inundava. Tentei resistir, tentei parar... mas não podia. Em vez disso, apertei-o com mais força e gritei, quando o prazer assumiu uma velocidade vertiginosa e transportou-me até às estrelas. Ofegante, eu chorava lágrimas de alegria, enquanto atingia a vibração final de satisfação que Jayme me proporcionara em sintonia com a explosão forte e poderosa de sua satisfação plena. As sensações vibrantes cessaram, no entanto continuávamos ali, abraçados, deliciados com tudo aquilo que nos envolvia até à raiz do cabelo.
     Estou na "Estrela Cintilante", conservo na memória a continuidade do grande passado no presente, preparando-me para o grande futuro. Cuido com zelo, atenta aos acontecimentos, criando um traço de união entre os grandes Ontem, Hoje e Amanhã que englobam a família de Corina e a minha também. Jayme e eu sustentamos o esforço, buscamos a aspiração de consolidar um futuro promissor às nossas famílias.
     E o futuro chegou acompanhado de contingências e fatos reais.
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http://www.youtube.com/watch?v=khMr3WmbvOo


     





HOTEL LINDA DO ROSÁRIO - cap VII



HOTEL LINDA DO ROSÁRIO
(Parte VII)

     Este ano de 2002, completam 34 anos que faço o mesmo caminho de amor até o Hotel Linda do Rosário. O mesmo ritual de amor: duas horas de permanência em nosso ninho de beijos, afagos e sexo, o quarto 201, na hora do almoço e retorno imediato. Em nosso primeiro encontro, Jayme completara 38 anos de idade e eu 36 anos. O tempo passa, voa o tempo do nosso amor, hoje estou com 70 anos de idade e o meu amado 72 anos. O tempo do amor passou e eu nem senti, não senti porque ele permanece. Às vezes me pergunto: como pode? Ser feliz no amor, é ser feliz em tudo na vida - até mesmo manter um casamento falido, quando o parceiro é alvo de um amor que não envolve sexo - Jayme com Corina e eu com Márcio.
     Mudando-se o que se deve mudar, eu mudei, ou transmutei? Jayme transmutou ou mudou também? Ousamos na medida certa, pedimos o que pudemos pedir, queremos nos querer para sempre e procuramos amar sem medida sem extravagância ou provocação. Calados, batemos à porta da felicidade - e do saber consciente da nossa medida certa em proceder certo também - assim que a porta foi aberta. Porque, somos conscientes de que o saber não se faz; ele é aquilo que se revela quando a porta se abre. Em nosso caso de amor, a porta não se abriu, ela se escancarou para nós, de lés a lés, o caminho estava desimpedido. Para mim e Jayme, todos os caminhos nos levavam ao quarto 201 da Rua do Rosário, 55, centro do Rio de Janeiro, esquina com a Rua Primeiro de Março, cujo nome é em comemoração ao "dia do fico"; e ficamos, e fizemos e permanecemos neste amor sem igual, desigual no tempo e no espaço porque, à medida que avançávamos em anos, mais aumentava em nós a vontade de mais amar. Foi esta a fórmula da síntese do esforço e da graça que nos uniu: a do princípio do trabalhoso meio de aceitação e da receptividade sem o menor receio, do mérito enfim e do dom. Este é o enunciado da lei absoluta de todo o progresso amoroso e, por consequência, de toda a disciplina imposta por nós em nome do bom senso, quando praticamos amor neste quarto 201. Sem esta prática, o nosso amor seria mero historicismo e estéril. Existe, em nosso profundo amor a Obra, e essa obra realizada e em realização, é filha da graça e do esforço conjunto.
     Num processo natural de um convívio saudável, os nossos filhos uniram-se em matrimônio: Jonas casou-se com minha filha Cármen em 1978; Em 1981 foi a vez Leandro contrair matrimônio com a doce Débora; no ano 2000 foi a vez de Vicente casar-se com Constança. Guilherme está casado, na França, com uma linda francesa, artista plástico. Os nossos lares foram povoados por netos, lindos netos, lindos momentos de alegria.

     A sombra da morte também nos visitou, levando a querida Corina em 1985, deixando-nos profundamente tristes. Muito chorei o desaparecimento de minha querida amiga irmã. Serenamente partiu agradecendo à vida, agradecendo a todos pela felicidade plena a si proporcionada por todos nós. Sempre é muito dolorosa  a partida de um ente querido. Corina, em seu leito de morte, conservava traços de beleza, de bondade e muita compreensão. Ela gostava muito de relembrar o passado vivido por nós duas. Dediquei toda a minha atenção àquela criatura angelical. A experiência empírica da morte é a do desaparecimento dos seres vivos do plano físico. Essa é a experiência que nos dão nossos cinco sentidos. Essa é a experiência dolorosa que nos impõe a sensação de perda. Mas o desaparecimento como tal não se limita a isso, uma vez que é experimentado também no domínio da experiência interior, ou da consciência. Imagens e representações desaparecem dela como os seres vivos desaparecem da experiência dos sentidos através do esquecimento. As nossas famílias nunca esqueceram desta venerável criatura. Ela estava indelevelmente gravada na memória dos filhos como exemplo de grande mãe. Uma bela moldura ostentava a fotografia de Corina, estava intronizada na sala de visitas mostrando claramente que o seu lugar de esposa e mãe jamais será preenchido por outra e qualquer mulher.
     Jayme, no quarto 201, do Hotel Linda do Rosário, mostrou todo o seu desespero e desencanto face à morte de Corina. Sentia-se desamparado, abatido pela perda, o sofrimento dos filhos, o luto que dominava os recantos da casa, o cheiro da ausência, os belos vestidos, intocados, guardados no armário. O que fazer?
     - Se ao menos você fosse viúva, eu casaria com você! - disse ele.
     - Jayme, meu querido amor, - respondi - nunca pense isso! Mesmo que eu fosse viúva, jamais oficializaria o nosso amor. Os nossos filhos jamais aceitariam que isso acontecesse! Seria um escândalo sem precedente! Tremo só de pensar! Se existissem somente Corina e Márcio, nada nos impediria de já estarmos juntos há tempo! O problema são os nossos filhos e netos! Você viu o desespero de Thiaguinho, o nosso neto diante do corpo inanimado da avó? Meu amor, fomos marcados para ser amantes somente... O que importa é que o nosso amor é eterno, custe o que custar! Sinceramente, sentir-me-ia fragilizada se tivesse que enfrentar as objeções dos nossos filhos!
     - Você tem razão, meu amor,  - não me sentiria feliz em ver você sendo hostilizada... O mais grave: até pelos próprios filhos!

     Márcio e eu passamos a viver em casa de Jayme durante o dia, só retornando à noite para a nossa casa. Enquanto eu ia trabalhar e amar o meu amor de verdade, Márcio, já reformado do exército, comandava o andamento da casa enlutada.
     Considerando o domínio do esquecimento e da recordação: a memória, no domínio subjetivo, é a magia que efetua a evocação das coisas do passado, tornando-as presentes. Como o feiticeiro ou o necromante evoca o espírito dos mortos, fazendo-os aparecer, também a memória evoca as coisas do passado e as faz aparecer à nossa vista interior mental. Eu, por exemplo, sempre evoco o passado que me uniu a Jayme, gosto de recordar cada instante, cada momento deste amor sem limites que me faz jovem, os sentidos afloram e fazemos amor em sucessiva escala subjacente. Dependendo do tipo da recordação, procuramos estender esta recordação num ritmo lento, paciente, condescendente e prazeroso. A velhice não limita o amor, ela aprimora, aperfeiçoa a arte de amar, uma perfeita sintonia entre o masculino e o feminino, gerando uma fonte de eterno amor que abastece todo o círculo familiar. A recordação presente é o resultado de operação mágica no domínio subjetivo pelo qual eu consigo fazer surgir do nada negro do esquecimento uma imagem viva do passado... Será uma marca impressa em meu coração? Um símbolo a me lembrar deste amor perfeito? Uma cópia do que já se encontra impresso em minha alma ou um fantasma de tudo o que precedia o nosso embate entre as polaridades?
     A memória é marca impressa enquanto reproduz uma impressão recebida no passado; é um símbolo enquanto se serve de minha imaginação para representar uma realidade que ultrapassa sua representação imaginária; é cópia enquanto só quer reproduzir o original do passado; é fantasma enquanto é aparição surgida do abismo negro do esquecimento e enquanto faz reviver o passado, tornando-o presente à minha visão interior.

     Em 1990,  foi a hora e a vez da partida de Márcio para a eternidade. Foi outra experiência dolorosa. Foi indescritível a reação dos nossos filhos! Márcio conseguira o amor de todos eles, além de esposo, cunhado, amigo, foi pai, tio, avô, sogro, conselheiro e amigo de todos nós. Sabia dispensar uma palavra certa e de incentivo a quem precisava de apoio e carinho. Os netos, inconformados, choravam a perda do avô querido. Foi muito difícil coordenar aquele enredo de luto e de dor. Eis-me, mais uma vez perdida no desespero da perda! Márcio, devido à sua dedicação aos estudos e ao saber, não se revelara um bom amante, um sedutor ou dono de uma sensualidade que o tornasse apto a atrair o amor do sexo oposto. Era um comportamento sexual satisfatório mas não o suficiente. Márcio atraia o amor de todos nós por causa do bom humor, da alegria de viver, da simplicidade e da compreensão. Viveu a medida exata de sua felicidade: 61 anos. Ainda jovem para uma qualidade de vida pautada na paz de espírito.

     A reação de Jayme foi a de muita tristeza pela perda do amigo de longas datas, amigo este que transpôs desafios e aceitou viver sua vida sem grandes questionamentos... Será que Márcio desconfiava do relacionamento extraconjugal que me unia a seu grande amigo Jayme? Afinal, a sociedade hipócrita impõe uma fidelidade conjugal baseada na oclusão mental, numa sórdida subserviência a uma causa que foge à compreensão humana. Príncipe encantado, alma gêmea, cara metade, felizes para sempre... Diariamente todos os mitos românticos são despejados na cabeça de todos nós. Contos de Fadas contados às crianças através de filmes, músicas, novelas e livros, dando a ideia de que existe, em algum lugar no mundo, alguém que vai nos completar com um grande amor, nos contemplando com uma felicidade total, inculcando em nossas mentes a ponto de considerarmos ser isto uma verdade universal.
     Sem medo de polêmicas, afirmo que a entrada do amor romântico no casamento representa um golpe de morte na instituição do matrimônio, provocando frustrações, ciúmes e uma preocupação obsessiva com a chamada "fidelidade conjugal". A saída para um casamento estável é se respeitar a individualidade do parceiro e não atirar a culpa pelo fracasso matrimonial sobre o outro. Quando amamos de verdade, sem ser "alma algema", sem imposição, ato da escolha voluntária e precisa, existirá uma fidelidade aos nossos próprios princípios. Deixando de existir traição ou infidelidade quando procuramos este amor em outro parceiro.

     Será que Márcio desconfiava de mim e Jayme? Se ele desconfiava, abriu mão desta desconfiança porque nunca tocou no assunto. Soube ser um gentil homem, e por isso mesmo eu o amava tanto...

     Jayme e eu estávamos livres para amar... Como assim? Sempre livres vivemos para amar este amor sem reserva e sem remorso... Viúvos ficamos, ele de Corina, eu de Márcio. Livres estamos deste preconceito voraz que cerceia tantos grandes amores nascentes e morrem em seus nascedouros... Romeu e Julieta... Imagino Romeu velho, beberrão e indecoroso em sua manifestação de amor por Julieta... Por outro lado, imagino Julieta, gorda, com varizes, peitos caídos, parideira e infeliz por ter acreditado naquele amor que nunca existiu... Infelizes morreram, envenenados pelo ódio... numa situação pior do que o veneno que interrompera as suas vidas em plena flor da idade...
     Amanhã será o dia dos namorados, véspera do dia de Santo Antonio de Pádua ou de Lisboa... Amanhã será o dia das minhas declarações, dos meus beijos e das minhas juras a Jayme, o meu eterno namorado...


HOTEL LINDA DO ROSÁRIO - FINAL

HOTEL LINDA DO ROSÁRIO

(Final)
 

Hoje, 12 de junho de 2002, uma quarta feira, DIA DOS NAMORADOS, o meu dia. 

Hoje, 12 de junho de 2002, uma quarta feira, dia dos namorados, o meu dia.

Meu feliz dia principia,
É felicidade dos pés à cabeça.
Por incrível que pareça,
Amo amar o amor do meu bem querer...
 Para o dia de hoje, fiz-me bonita,
Coloquei sapato alto, vesti-me de princesa,
Com certeza, ele vai gostar de me ver assim:
Camafeu de marfim que ele me deu.
Tantas coisas bonitas, brincos, braceletas,
Amuletos para que nosso amor nunca tenha fim...
Ah meu homem amado, não fique assim tão desanimado,
Nunca vou te deixar, por nada neste mundo vou te largar,
Pois és tudo o que eu quero, e te venero
Quando sinto que sentes medo de me perder...
A força do amor me força, me projeta, me adianta,
Sem querer querendo, o primeiro beijo vou concedendo,
Para depois tu beijar-me também.
Ah que amor tão grande, meu cavaleiro andante
Que eu sinto por tu pela vida afora,
Muito embora, anos e anos nos unam...
Diminuiu o tempo, parece ontem, o amanhã já vem,
E vamos nós neste vai e vem do bem,
Querendo este bem de amar-te a ti somente...
Carlos lira

     Hoje o dia amanheceu festivo, ou eu é que estou festiva, cheia de encanto, de muito amor para ofertar ao meu amor. Procuro motivações para alegrá-lo, e torná-lo feliz também... Fiz-me bonita, o verde musgo do vestido, em contraste com minha pele, torna-me mais jovem, apesar dos meus setenta anos. No decorrer da existência descobri uma coisa: o amor me fez mais jovem, adiou a velhice, encheu-me de graça, para ele somente. Jayme me ama, que quero mais da vida? Desde o nosso começo de amor, ele proibiu-me de dar-lhe presentes, porque eu somente, sou o seu vivo presente, e isto lhe basta. Apesar da idade, sempre me cuidei para ele, faço ginástica, mantenho a plástica, sem operação plástica fazer... Jayme proibiu. Ele quer sentir cada ruga nascer em meu corpo, reclama se demora alguma delas aparecer. Com um homem desse a meu lado, não tenho medo do avanço da idade. Justiça seja feita: aos 72 anos de idade, ele se cuida, pratica natação, levantamento de peso, cultura do físico não lhe falta, formamos um casal de velhos jovens! Sou feliz por amá-lo somente, um estado permanente  de amor e mais amor... Uma surpresa me aguarda, bem sei, ele me falou e prá la me vou, no 201 do Hotel Linda do Rosário, linda sou eu, neste hotel centenário, que me acolheu, me recebeu em seus corredores, vozes ativas, festivas de amores, antes do meu, por lá estiveram, e muito amaram, menos que eu... Sou plena de graça porque nem a mordaça me impede de dizer o quanto feliz sou...
Rua do Rosário, prédios antigos, mofados, os arranha céus os escondem, os  sufocam, mesmo assim, cantam eles seu  passado, e vou eu, passo a passo, cadenciado, ao encontro do homem amado...
Meio dia, especial evento, saio do vento e entro, subo as escadas, lance por lance, até chegar no quarto 201. Tenho a chave e abro, um tango me acolhe, mesa posta, dois pratos, colheres e garfos, comida pronta, vinho francês - Bordeaux - taças, rosas vermelhas, a minha foto de menina cigana, tudo pronto para comemorarmos em grande estilo o dia dos namorados. A emoção sufocou-me. Havia um perfume no ar, estonteante, inebiante que me inebriou. Beijei-o antes para depois receber os beijos seus. Terno e gravata, feito um magnata do amor, meu Jayme querido, como manda o figurino, de um amor  marcado pelo tempo, feito menino, o nosso passado, ressuscitou...
     - Jayme, que encanto é este? Você me trouxe o passado, tudo de bom que lá ficou, agora, está presente, diante de nós!

     - É o ritual do amor, querida Irene - ele me respondeu - é ritual do amor...
     Ritualisticamente falando, um garçon nos serviu o almoço, um som baixinho, tocava as músicas que marcaram as nossas vidas, Jayme não se cabia de felicidade. Ele é imprevisível, fica feliz quando ver os meus olhos brilharem de encantamento. Sinto, confesso, os meus olhos naquele momento de enlevo, brilhavam como brilham os olhos de uma jovem dama...

     O requinte do cardápio - Salada de Verdes com Carpaccio de Figos. Papardelle de Camarão e Tangerina como prato principal e de sobremesa Creme de Manga com Nozes.
     Após o almoço, todos os apetrechos foram retirados do quarto, só ficamos nós dois: Jayme, eu e as rosas também. O perfume do amor perdurava no recinto, uma mistura de lavanda, perfume francês e da comida, era singular aquele ambiente.
     Depois dançamos boleros, valsas e tangos, até não poder mais. Vestida de roupa fina, deitei-me feito menina, ali mesmo na cama do amor, do nosso amor, fechei os olhos, para sonhar, não acreditando ser aquilo verdade. Pela mente passaram-se dias inesquecíveis de viagens memoráveis, pelo exterior, tramadas, para que ninguém desconfiasse...
     - Está com sono, meu amor? - perguntou-me Jayme - está cansada?
     - Cansada, eu? - respondi abrindo os olhos - não... estava pensando, recordando as vidas que vivemos, as nossas fugas, os momentos marcantes, febricitantes... Se eu morresse hoje, meu amor, eu morreria feliz, agradecendo a Deus pelos filhos que tive, pelo amor de Márcio, pelo carinho de Corina e, principalmente, por ter você...

     - Nem fale de morte! Isso atrai a má sorte! Se tu morres, morrerei também, jamais poderia viver sem tua vida junto a mim! - disse ele.

     - Somos da vida, meu amor - respondi - da vida passada, do presente e da vida futura...
     - Quando escuto a tua voz, meu amor, sinto uma força que me renova, - disse Jayme, enfatizando as palavras - é uma canção que soa a meus ouvidos. Os teus gestos expressivos, sorvendo a largueza de teu sorriso, amando-te escondido, neste ninho de amor somente... Este nosso amor não tem preço, saiu muito caro, custou o preço do nosso silêncio... Qual será o preço de ouvir os teus passos apressados, eternamente fugindo de um amor sem mácula?  Trago dentro de mim a doçura de teu olhar apaixonado, pedindo-me mais e mais meu afeto, nunca perdemos o controle, nenhuma lágrima de dor derramada, só de prazer e de querer, ela inundava nosso leito de amor. Entre nós, nenhuma palavra falseou, ferindo-nos à contragosto. Só tenho a lamentar que, em nossa vida de sempre, nenhuma vigília fizemos, nenhuma aurora nos surprendeu tendo os teus braços unidos aos meus...

     - Jayme, eu decorei tantas palavras apaixonadas para te dizer - respondi - e tu dizes palavras melhores, que apaixonam, e encantam, deixando-me silente a ouvir-te...

     Fizemos um amor solene, gestos seguros, sagrados pela idade - somente os velhos amantes sabem fazer - e a felicidade a nos acompanhar...

     Um profundo sono nos dominou, abraçados, agarradinhos, adormecemos... Oh felicidade infinda!!!

     De repente, batidas desesperadas na porta nos deixaram sobressaltados:
     - Gente, corram! O prédio vai desabar!!!...

     Meu Deus!!! Acordei desesperada, fui à janela e vi a multidão numa corrida desenfreada...

     - O que vamos fazer? - gritei um grito de medo...

     - Calma, meu amor - Jayme exclamou em voz pausada - volta à cama, minha amada, vamos juntos morrer de amor...

     De repente, uma luz acendeu em minha mente, e respondi prontamente:
     - É verdade, meu amor! Vivemos toda uma vida de amor, envelhecemos e nada melhor do que morrermos juntos, projetando esse amor pela eternidade sem fim...

     Juntinhos, abraçadinhos, de roupas íntimas, esperamos a morte chegar...

     Foi um som surdo, muita poeira, os escombros sobre os nossos corpos, e juntos partimos, de mãos dadas, fomos ao encontro da eternidade, fomos viver o nosso amor sem limite...

     Da eternidade, ditei todas estas palavras, letras de amor pleno, para quem, em vida terrena ainda, sensibilizado, dispor-se a escrever o história do nosso amor eterno...